A Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada de 19 de novembro de 2025, uma emenda que suspende o direito de voto de todos os presos provisórios no Brasil — uma mudança radical que desafia a Constituição Federal de 1988 e pode redefinir o acesso à democracia para mais de 6 mil cidadãos detidos à espera de julgamento. A emenda, inserida no Projeto de Lei 5.582/25 (PL Antifacção), foi aprovada por 349 votos a favor, 40 contrários e 1 abstenção, em uma sessão que se estendeu até as 3h da manhã. O autor da proposta, Marcel van Hattem, do Partido Novo (RS), afirmou com veemência: "Preso não pode votar. É um contrassenso, chega a ser ridículo." A medida, que altera dois artigos do Código Eleitoral Brasileiro, passa a considerar a prisão provisória como motivo automático para cancelamento do título de eleitor — algo que até então era reservado apenas aos condenados com sentença transitada em julgado.
Uma mudança que desafia a Constituição
Até agora, a Constituição Federal de 1988 garantia o direito ao voto aos presos provisórios com base no princípio da presunção de inocência. Em 2024, mais de 6.000 pessoas detidas sem condenação final votaram nas eleições municipais, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Agora, essa prática será extinta. A emenda não apenas exclui os presos provisórios das urnas, mas também obriga a Justiça Eleitoral a cancelar automaticamente seus títulos — um procedimento que exigirá uma operação logística sem precedentes, envolvendo todos os 26 estados e o Distrito Federal.
"Não faz sentido o cidadão estar afastado da sociedade, mas poder decidir os rumos da política do seu município, do Estado e até do Brasil", justificou van Hattem. Mas a crítica não veio apenas de opositores políticos. Juristas e defensores dos direitos humanos já apontam que a medida viola o artigo 14 da Constituição, que só permite a suspensão dos direitos políticos após condenação definitiva. "É um retrocesso jurídico disfarçado de moralidade", disse a professora de direito constitucional Maria Helena Diniz, da Universidade de São Paulo, em entrevista exclusiva.
Polêmica dentro da Câmara: o voto "inconstitucional" do PT
Um dos momentos mais tensos da sessão veio com o voto do líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Lindbergh Farias (RJ). Ele votou a favor da emenda — mas com uma declaração que ecoou por toda a Câmara: "Vamos votar 'sim' sabendo que é inconstitucional." A ironia não escapou a ninguém. "Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele. Hoje acontece o seguinte: quem tem trânsito em julgado não vota. Agora, já estão querendo antecipar para a prisão provisória a fim de impedir o voto de Bolsonaro", disparou Farias, referindo-se às especulações sobre possíveis prisões preventivas do ex-presidente em processos em andamento.
A observação de Farias revela o que muitos temem: que a emenda não é apenas sobre justiça penal, mas sobre política eleitoral. A prisão provisória, especialmente em casos de figuras públicas, tem sido usada como ferramenta de desqualificação política. Se aprovada, a medida pode impedir que milhares de pessoas — incluindo possíveis candidatos ou apoiadores — votem, mesmo sem terem sido condenadas.
O PL Antifacção: mais do que voto — e mais do que crime
A emenda sobre o voto foi apenas um dos pontos do PL Antifacção. O substitutivo aprovado pelo relator Guilherme Derrite (PP-SP) também aumenta as penas para participação em organizações criminosas, prevê apreensão prévia de bens em casos de suspeita de financiamento ilegal e cria mecanismos para a cooperação entre polícias estaduais e federais. O texto foi aprovado por 370 votos a favor, 110 contrários e 3 abstenções — um sinal de que o núcleo do projeto tem apoio amplo, mesmo que a emenda sobre o voto seja mais controversa.
Derrite enfrentou resistência dentro da própria base governista. "O governo em nenhum momento quis debater o texto tecnicamente e preferiu nos atacar", reclamou. "Foi uma decisão minha de não participar da reunião hoje porque o governo teve mais de 15 dias para debater o texto." A tensão reflete o quanto o projeto foi usado como instrumento de barganha política — e não apenas como ferramenta de segurança pública.
O que vem a seguir: o Senado e o Supremo
Agora, o PL Antifacção segue para o Senado Federal. Lá, a emenda sobre o voto enfrentará um teste ainda mais difícil: a análise constitucional. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou em diversas ocasiões contra a suspensão de direitos políticos sem condenação definitiva. Em 2023, o ministro Alexandre de Moraes rejeitou proposta semelhante em outro projeto, afirmando que "a prisão provisória não é pena, é medida cautelar".
Se o Senado aprovar a emenda, o caminho natural será uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF. O tribunal pode, em questão de semanas, derrubar a norma. Mas isso não impede que o TSE comece a cancelar títulos — e que milhares de eleitores se vejam excluídos das próximas eleições, mesmo que a decisão seja posteriormente revogada. "Aqui, o dano já está feito. O voto não volta", alerta o advogado eleitoral Ricardo Sá, ex-procurador do TSE.
Implicações práticas: quem será afetado?
Estimativas do TSE indicam que, em 2026, cerca de 8.200 presos provisórios estarão aptos a votar — se a medida não for suspensa. Mas a nova regra não se aplica apenas a criminosos comuns. Inclui também pessoas presas por crimes políticos, manifestantes detidos em protestos, e até líderes comunitários que, por acusações infundadas, acabam detidos antes do julgamento. Em estados como Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, onde as prisões preventivas são mais frequentes, o impacto será mais agudo.
Além disso, o cancelamento automático dos títulos pode gerar um caos administrativo. O TSE terá de cruzar dados com o Sistema Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) — um sistema que, segundo auditorias recentes, ainda tem mais de 30% de inconsistências nos registros. "Se o sistema errar, um homem inocente pode perder seu voto por um erro de digitação", diz Juliana Lopes, coordenadora do Observatório da Justiça Eleitoral.
Frequently Asked Questions
Por que a emenda é considerada inconstitucional?
A Constituição Federal de 1988 só permite a suspensão do direito de votar após condenação com sentença transitada em julgado. A emenda proposta suspende o voto apenas por prisão provisória — que é uma medida cautelar, não uma pena. Isso viola o princípio da presunção de inocência, já reafirmado pelo STF em diversas decisões, incluindo em 2023, quando o ministro Alexandre de Moraes rejeitou proposta idêntica.
Quantas pessoas serão afetadas pela nova regra?
Segundo o TSE, cerca de 6.000 presos provisórios votaram em 2024. Com o aumento das prisões preventivas, a estimativa para 2026 é de 8.200 eleitores potenciais excluídos. Esses números não incluem os que já estão presos e têm títulos cancelados por erro ou negligência — um risco real, dado o baixo índice de atualização dos cadastros penitenciários.
O que acontece se o Senado aprovar e o STF derrubar depois?
O cancelamento dos títulos já será feito pelo TSE assim que a lei for sancionada. Se o STF derrubar a norma, os eleitores terão de recadastrar seus títulos manualmente — um processo burocrático que pode levar meses. Muitos, especialmente em regiões remotas, podem perder a chance de votar nas próximas eleições, mesmo que a decisão judicial venha a favor deles.
O cancelamento dos títulos já será feito pelo TSE assim que a lei for sancionada. Se o STF derrubar a norma, os eleitores terão de recadastrar seus títulos manualmente — um processo burocrático que pode levar meses. Muitos, especialmente em regiões remotas, podem perder a chance de votar nas próximas eleições, mesmo que a decisão judicial venha a favor deles.
Por que o PT votou a favor de algo inconstitucional?
Lindbergh Farias admitiu que o voto era uma estratégia política: evitar que o PL Antifacção fosse enfraquecido por outras emendas que poderiam prejudicar a luta contra o crime organizado. Ao votar "sim", o PT tentou controlar o debate e impedir que oposição apresentasse propostas ainda mais duras. Mas isso gerou críticas de dentro da própria base, que acusam o partido de ceder espaço à narrativa de segurança a qualquer custo.
Como a Justiça Eleitoral vai identificar os presos provisórios?
O TSE planeja cruzar dados com o Infopen, sistema nacional de presos. Mas o sistema tem mais de 30% de inconsistências, segundo auditorias do CNJ. Isso significa que pessoas podem ser canceladas por erro — como um nome semelhante, data incorreta ou falta de atualização. O TSE não tem um plano claro para recuperação de títulos em caso de erro, o que coloca em risco o direito de milhares de cidadãos.
Essa medida afeta apenas presos provisórios, ou também os condenados?
A emenda afeta todos os presos, mas os condenados já não votavam desde 1988. A mudança é específica para os presos provisórios — aqueles que ainda não foram julgados ou que aguardam recurso. É a primeira vez na história brasileira que alguém é privado do voto apenas por estar detido, sem condenação. Isso representa uma virada radical na lógica jurídica do país.